Sei lá. Às vezes bate uma nostalgia do que já vivi. Às vezes, assim como estou agora. Sentado, pensando, pensativo. Pensando nos meus pensamentos. Me vendo de fora, fora de mim. Bebo um pouco de vodka com suco de caju, ao som de Miles Davis. Sou um mistura de emoções. Metade de mim é loucura, a outra é nostalgia. É sábado, por volta das onze da noite. Eu deveria ir beber. Deveria ver o mundo, ver as pessoas. Ás vezes amo o mundo, outras o odeio. Vai saber qual é o limite das coisas. Talvez nada tenha limite. Limite serve para te travar. Te deixar parado. Não deveria escrever nessas condições, isso dever estar ficando sem nexo. Mas não quero saber do nexo. Quero bater até sangrar. Preciso me comunicar, senão enlouqueço.
O dia não começou muito bem. Logo de manhã um vizinho veio aqui e bateu na porta do apartamento. Nem ao menos se deu ao trabalho de tocar a campainha. Disse que o meu gato trepou com a gata dele. Eu disse que não era minha culpa, que os gatos não sabem o que fazem, que agem por instinto. Ele não parecia me ouvir. Disse que se ela já estava grávida e que iria jogar todos os filhotes na minha porta e que eu me virasse.
Gatos, gatos não, gato. Tenho um gato. O nome dele é Freud. Freud é garanhão. Pega todas por aí. Deve ter uns cem filhos. Ele não gosta muito de viver aqui no apartamento. O curioso é que toda noite, ele me pede para sair, dar uma volta na rua. Eu deixo. Ele vai, todo bobo. Volta de manhã, por volta das sete. O porteiro abre, já sabe da história. Não gosto de deixá-lo sair aos finais de semana. Folga do porteiro. O outro dos fins de semana é meio mal encarado, melhor evitar esse tipo de gente.
Depois eu fui à padaria. Pedi um pão na chapa e um café. Puro. Sem açúcar. Sempre acreditei que as coisas devem ser puras, senão ficam sem gosto. Café sem açúcar, pizza sem ketchup, batata frita sem sal, e assim por diante. Não quero prostituir as minhas papilas.
Uma morena sentou do meu lado. Era uma mulher interessante. Eu tinha tomado um pé na bunda há mais ou menos um mês. Já estava bem e precisava continuar. Fiquei olhando para ela, esperando alguma reação. É meio arriscado chegar assim, sem nem ao menos um olhar. Ela então, me olhou. Uma vez. Duas. Três. Três já era o suficiente. Se eu demorasse muito, ela perderia o tesão e aí, já era. Fim de jogo. Eu tinha medo. Sempre dá medo falar com uma estranha. Falam que não tem jeito, é coisa de instinto. Então, já que não tinha jeito, puxei assunto com a estranha da padaria:
- O pão daqui é uma delícia, já provou?
- Já sim, às vezes compro aqui.
- Sério? Nunca te vi por aqui.
- Ah, coisa do destino.
- Pois é. Você acredita em destino?
- Não sei, talvez. De vez em quando eu acredito.
- Só de vez em quando?
- É. Nas outras vezes, não sei no que acreditar.
- Você me parece confusa.
- Todos somos confusos.
- Qual seu nome?
- Às vezes sou Maria, às vezes sou Helena.
- Como assim? Bipolar?
- Não é bem por aí. Não é bem isso. Meu nome é Maria Helena. Maria é toda certinha, não faz nada de errado, é comandada pela razão. Já Helena, é o oposto. Adora aprontar, uma romântica. Sempre acaba sendo levada pelas emoções.
- Isso é muito interessante. Deve ser difícil de lidar com isso. Com quem estou falando agora?
- Com a Maria. Ainda é cedo. Helena costuma ser um espírito noturno.
- Queria que já fosse noite.
- Por que?
- Seria ótimo conhecer esse seu outro lado.
- Deu azar, só vim tomar um café.
- Pois é. Meu nome é Juan, prazer.
Estiquei a mão para apertar a mão dela, apertamos e ela me olhou com intensidade. Respondeu:
- Prazer, Juan.
- É incrível. Há poucos minutos eu estava conversando sobre gatos com um vizinho, agora estou aqui, conversando com uma mulher encantadora. A vida dá muitas voltas, isso que fazemos por aqui não faz nenhum sentido. Obrigado por alegrar meu dia.
- Helena adoraria ouvir isso. Ela aproveita a vida como ninguém.
- Ela sabe que estamos aqui só de passagem e que todas as aventuras são bem vindas.
Nova troca de olhares. Ela era realmente encantadora. Eu tinha que pedir o telefone dela. Ainda era muito cedo para um almoço e tínhamos acabado de ter um encontro às cegas, o café já tinha acabado e ela começou a aparentar estar com pressa. Questionei:
- Olha, Maria Helena. Foi muito bom te conhecer, havia algum tempo que eu não conversava com alguém tão agradável. Você tem telefone?
- O prazer foi todo meu, Juan. Tenho sim, pode anotar?
Anotei. Nos despedimos. Beijo no rosto, um de cada lado. Ela saiu antes de mim, eu a observei. Deveria ter mais ou menos a minha idade. Terminei de comer o pão. Era hora de partir, agora com um pedaço de pão, um gole de café e um pedaço de papel mais pesado. Guardei o número no bolso da calça. Iria ligar, ela valia a pena.
Chegando em casa, já tratei de tirar o pedaço de papel do meu bolso. Guardei num pote, o mais perto que tinha. Era um lugar seguro. Fui preparar o almoço.
Fiquei pensando no que tinha acontecido. É meio doido saber que se não fizermos nada, a vida só vai passando. Às vezes um olhar diz tudo. Aí você escolhe se vai em frente, ou se o medo te paralisa. É melhor ir. O máximo que acontece é levar um não. E se você achar que é melhor ficar ali, quietinho? Bom, aí o não é certo. Por isso que eu vou.
De tarde, o almoço já estava pronto. Empadão de frango com arroz. Uma delícia. Tão bom que até o Freud comeu um pedaço. Ficou lambendo os beiços. Era hora de tirar uma soneca. Às quatro tinha jogo do Vasco, eu não poderia perder aquilo por nada. Vitória. Mais uma. Liderança isolada!
O sol foi se despedindo e a lua chegaria em breve. A lua me lembrou de Maria Helena, Helena.
A noite ia chegando depressa, até que por volta de onze horas, eu me peguei ouvindo Miles Davis e bebendo uma mistura de vodka com suco de caju. Liguei para Maria Helena. Ela atendeu, parecia estar com sono. Perguntei se não queria dar um passada no meu apartamento. Ela disse que só se eu a buscasse. Eu concordei. Desci com o gato, apesar de ser fim de semana. Mas ele é muito fofoqueiro e ela poderia ser alérgica, melhor não arriscar.
Estacionei no lugar combinado. Nos beijamos. Transamos. Dormimos de conchinha. No dia seguinte, quando abri a porta, lá estava uma caixa com sete gatinhos, recém nascidos. Eu peguei a caixa, não tinha jeito. Desci com ela e com Maria Helena. Iriamos até à padaria. Eu fiquei pensando no que faria com aqueles gatos. O dono da padaria deixou que eu os deixasse lá, que alguma boa alma os pegaria. Dei sorte, durante o café, as pessoas foram chegando, cada um foi pegando um gatinho, e eu foi me safando daquela encrenca. Nem deu tempo de chamar os gatos de gatos de padaria. Maria Helena terminou o café antes de mim, de novo. Me olhou com intensidade e disse:
- Esquece esses gatos de padaria e me leva para a sua cama. Ah, esqueci de te contar, sou alérgica a gatos, ainda bem que você não tem animais!
Gelei na hora. Freud já devia estar voltando da noitada. Liguei para o porteiro, perguntei se não tinha jeito de Freud ficar pelo térreo. Ele disse que iria me custar cinquenta pratas. Paguei. Freud não ficou muito satisfeito. Até que encontrou uma gatinha, que o levou para fazer psicanálise. E enquanto Freud estava no divã com a sua nova gatinha, Maria Helena e eu transávamos, como dois felinos.
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